Uma das coisas de que mais se ouviu falar durante as eleições de 2018 foi de Constituição. Os dois candidatos à presidência que chegaram ao segundo turno falaram em chamar uma nova constituinte. Muita gente reclamou. Mas afinal, o que é a Constituição? O que é a tal constituinte? O que diz o famoso artigo 5º? Como a constituição influencia a vida do caminhoneiro e do transportador? Leia este artigo até o final e entenda.
O que é a Constituição?
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Você sabe responder o que é e para que serve a nossa Constituição? Se não sabe, fique tranquilo, você não é o único. Uma pesquisa encomendada pelo Senado em 2013 mostrou que 43% da população tem baixo ou nenhum conhecimento sobre a Constituição.
Mas, conhecendo ou não, ela afeta a vida de todos, todos os dias. Isso porque a Constituição é a lei maior de um País e ela rege todas as outras. Ou seja, uma lei só pode ser aprovada se estiver de acordo com a Constituição. “A Constituição é a alma, o espírito de um país. Muitas vezes você conhece um país mesmo não indo lá, apenas lendo a sua Constituição.” afirma o Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Antonio Carlos Malheiros.
A nossa Constituição atual foi elaborada e aprovada em 1988 por uma assembleia constituinte (veja a história dela aqui). E aí vem outra questão: o que é essa constituinte que tanto os candidatos falaram?
A constituinte
Para que uma constituição seja escrita e aprovada é desejável que haja uma Assembleia Constituinte. Uma junção de pessoas que irão pensar, discutir, escrever, votar e aprovar uma nova constituição. Quem são essas pessoas? Via de regra, são representantes do povo eleitos exatamente para esse fim. Depois de feita a Constituição, a assembleia se desfaz e o país passa a andar de acordo com as novas regras estabelecidas.
Essa foi a proposta no primeiro turno do candidato do PT, Fernando Haddad, afirmando que uma nova constituição seria necessária para
“restabelecer o equilíbrio entre os Poderes da República e assegurar a retomada do desenvolvimento, a garantia de direitos e as transformações necessárias ao país”.
Já o vice de Jair Bolsonaro, General Mourão, do PRTB, defendeu, também no primeiro turno, uma nova constituição sem uma assembleia constituinte. Ela seria escrita por “notáveis”, que seriam grandes juristas e constitucionalistas. Depois, ela seria aprovada ou não pelo povo por um plebiscito.
“Uma Constituição não precisa ser feita por eleitos pelo povo. Já tivemos vários tipos de Constituição que vigoraram sem ter passado pelo Congresso eleito” – afirmou o general.
Mas ambas as declarações foram recebidas com muitas críticas, pois mudar uma constituição é assunto muito sério.
“Constituição não é uma brincadeira, ou seja, eu não gosto dessa… eu quero outra. Quando se faz uma nova constituição, nada do que tínhamos antes vale. Pode-se mudar tudo.” afirma o Desembargador Malheiros. Ele ainda explica que direitos importantes podem ser perdidos, como a proibição da tortura, a igualdade de todos perante a lei e todos os direitos garantidos no artigo 5º (veja mais sobre o artigo 5º no fim deste texto). Ele continua, “você só pode trazer uma nova constituição depois de um período de grande crise. Nós estamos vivendo uma crise sim, mas não nos moldes para provocar uma nova constituição. Veja só, nossa primeira Constituição foi quando ficamos independentes de Portugal, depois quando viramos uma república, e assim foi. A última, de 1988, foi após a ditadura militar. Não é qualquer crise econômica que provoca isso.”
E para quem acha que a nossa já está ultrapassada com 30 anos, a dos Estados Unidos, por exemplo, é a mesma desde 1787.
Ok, não dá pra fazer outra, mas pode-se mudar esta?
Sim, através das famosas PECs (Proposta de Emenda Constitucional). Como a PEC do teto de gastos públicos e a PEC das domésticas, só para citar algumas famosas nos últimos anos. Com elas, é possível mudar a legislação e adaptá-la às novas realidades do País. Para ter efeito, uma PEC precisa da aprovação de três quintos do legislativo, ou seja, pelo menos 308 deputados federais e 49 senadores precisam votar a seu favor. Por isso, fique atento a como o seu candidato a esses cargos vai votar nos próximos anos.
Mas no momento ninguém pode aprovar uma PEC. Por quê? Porque, segundo a constituição, quando o País estiver sob qualquer tipo de intervenção, não é possível alterá-la. Ou seja, como hoje existe uma intervenção militar no Rio de Janeiro, nenhuma PEC pode ser aprovada. Se a intervenção não for mantida no próximo ano, aí sim poderão ocorrer mudanças. Mas nem tudo pode ser alterado.
Cláusulas Pétreas, o que são? O que dizem?
Cláusulas pétreas são aquelas que não podem ser abolidas da Constituição de forma alguma. Elas estão no Artigo 60 e são as seguintes:
– A forma federativa de Estado; (ou seja, o Brasil não pode deixar de ser uma federação)
– O voto direto, secreto, universal e periódico; (por isso não se pode filmar o voto)
– A separação dos Poderes; (Legislativo, Executivo e Judiciário)
– E os direitos e garantias individuais, presentes no Art. 5º da Constituição. (já percebeu que esse número aparece bastante, né? Vamos falar dele mais pra frente)
Essas cláusulas podem até sofrer mudanças, mas nunca ser retiradas da Constituição ou diminuírem os direitos que elas garantem.
O Artigo 5º e como ele influencia a vida do cidadão
O Artigo 5º é o artigo dos direitos e deveres individuais e coletivos. Ali estão direitos e deveres que você provavelmente nem sabe que tem, mas que influenciam a sua vida todos os dias. Possui 78 incisos, mas é de fácil leitura. “Vale a pena ler a Constituição? Leia o Artigo quinto. Dá pra entender bem” afirma Malheiros. Para ler o artigo 5º, clique aqui. Mas vamos a alguns exemplos práticos:
A lei do caminhoneiro e o Artigo 5º
Em 2012 foi aprovada a Lei 12.619, que ficou conhecida como a Lei do Descanso. Ela trouxe diversos direitos ao caminhoneiro, como máximo de horas trabalhadas no dia e remuneração pelas horas de espera. Em 2015, a lei foi substituída pela 13.103, que tirou diversos desses benefícios. Muita gente argumentou que a nova Lei seria inconstitucional. E por quê? Porque ela fere o Artigo 5º inciso XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, (…). Ou seja, uma lei deu benefícios e outra, posterior, tirou. Teoricamente, isso não está de acordo com a constituição.
Nesses casos, quem se sentir prejudicado pode recorrer. A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Terrestres (CNTTT) ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF) uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a Lei 13.103, a ADI 5322. É o Supremo que irá decidir se a Constituição foi ferida ou não. Só que isso foi apresentado em 2015 e até agora não foi julgado. E a má notícia é que o STF não tem prazo legal para fazê-lo.
Outros incisos importantes do Artigo 5º
Vale destacar que, segundo o Artigo 5º, todos são iguais perante a lei. Embora pareça óbvio, existem muitos países onde isso não acontece, onde mulheres têm menos direitos, onde quem nasceu com uma certa religião, cor ou casta não tem os mesmos direitos que outros.
O inciso X diz o seguinte: são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; – ou seja, avalie bem antes de repassar uma mensagem por Facebook, Whatsapp, etc. Você pode cometer um ato inconstitucional e futuramente pode ter problemas com a justiça.
Destaque também para o inciso 33º e 34º:
XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;
XXXIV – são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:
a) o direito de petição aos poderes públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder;
b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal;
Ou seja, sempre que você precisar de informações dos órgãos públicos, eles são obrigados a fornecer.
O artigo 7º e o motorista empregado
No Art. 7º está a garantia de salário nunca inferior ao mínimo. Para muitos motoristas, é comum ser remunerado apenas por comissão, mas vale lembrar que a Constituição garante que mesmo se a comissão der menos que o mínimo, o salário não pode ser mais baixo que isso.
É o artigo 7º também que traz o fundo de garantia, o 13º salário, a remuneração do trabalho noturno superior ao diurno, o seguro desemprego, as férias, o descanso uma vez por semana, a licença maternidade e muito mais.
A tabela de fretes e o Artigo 170
Sabemos que a tabela de frete continua envolta em muita discussão. Tem gente que não aceita a tabela pois diz que ela é inconstitucional, isso porque o Artigo 170 inciso IV garante a livre concorrência.
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
IV – livre concorrência;
O próprio artigo também fala sobre assegurar a todos uma existência digna, o que, segundo os caminhoneiros autônomos, não é possível sem o frete mínimo. Além disso, o taxi tem tarifa mínima, o próprio Agronegócio, que critica a tabela, possui a Política de Preços Mínimos Agrícolas, que garante o valor mínimo de diversas culturas, como arroz, milho, algodão e muitas outras.
Como já vimos acima, quando existe uma dúvida se determinada lei é inconstitucional ou não, quem decide é o STF. O assunto está lá, onde representantes de caminhoneiros, da indústria e da agricultura foram ouvidos. Como a gente já sabe, não existe um prazo para o julgamento, mas por enquanto, a lei segue valendo.
Agora você já tem um conhecimento médio sobre Constituição Brasileira, mas ela versa ainda sobre muitos outros assuntos. É até considerada detalhada demais quando comparada a de outros países, mas ainda assim é tida como boa. Se você tiver interesse e oportunidade de lê-la, com certeza entenderá muito mais sobre o funcionamento de nosso País e sobre seus próprios direitos e deveres. Neste link você encontra a sua versão completa, com o texto original e todas as emendas já feitas desde 1988.
Por Paula Toco
Jornalista especializada em transporte comercial há mais de 15 anos.
Repórter do programa Pé na Estrada na TV (hoje no SBT) e coapresentadora do programa no Rádio (hoje na Massa FM). Mais de 300 mil seguidores nas redes sociais (Instagram + Tik Tok) onde fala de segurança e legislação de trânsito. Autora do livro “E se eles sumirem?” e palestrante de segurança no trânsito.