Cristal é uma pedra que agrega várias qualidades, sobretudo o brilho. Deve ser por isso que ela também dá nome às mulheres dos caminhoneiros. Hoje, 1º de agosto, é dia dela, por isso entrevistamos algumas cristais que contaram situações vividas no trecho. Descobrimos histórias interessantes.. tem drama, romance e aventura, uma verdadeira novela da vida real.
A cristal que ficou “presa” na boleia
Érica Gomes da Silva, 31 anos, é a cristal de Wellington, conhecido como Heto. Ela sempre acompanhava o marido nas viagens, mas, em 2021, a professora viveu uma história marcante. Uma viagem longa, de São Paulo ao Rio de Janeiro, com volta direta sem carregamento, plano que mudou no meio do caminho.
Heto recebeu de última hora uma ordem de carregamento em uma empresa que não aceitava a entrada de acompanhante. Os dois então combinaram que Érica ficaria na boleia aguardando. Porém, o carregamento atrasou e ela passou nada menos que 36 horas “trancada” no caminhão para não ser “descoberta” por ninguém. No começo, até foi tranquilo, comenta a cristal que mais tarde foi tomada pela ansiedade e desespero.
“Quando pessoal batia na porta para ver se ele tava no caminhão, meu coração acelerava, eu pensava: ‘não posso nem respirar aqui porque as pessoas vão ver e ele vai ser mandado por justa causa’ “.
Érica ficou reclusa sem poder usar um banheiro adequadamente “Fiz as necessidades em um baldinho”. O marido precisava comer no refeitório e permanecer a maior parte do tempo fora do caminhão para não levantar suspeita. Trazia a comida para a esposa escondido. Mas essa nem foi a pior parte da história, pois já voltando desse carregamento, outra surpresa…
Wellington percebeu um barulho no veículo e resolveu parar no acostamento, assim que destravou a porta para descer, um ladrão apareceu na porta do passageiro, ou seja, do lado em que Erica estava sentada. “Apontou a arma na minha cabeça, pegou o dinheiro que a gente tinha, levou o celular do meu marido, mas graças a Deus nada de mais importante, mas foi um desespero total”. Abalada, a cristal teve uma crise de choro até processar o ocorrido.
Cristal nada frágil
Assim como o cristal, a mulher de caminhoneiro é resistente e nada frágil como pode aparentar. Para Érica, a vida de quem é casada com caminhoneiro é sempre regada de preocupação, tanto na boleia do caminhão, quanto em casa na expectativa de que tudo dê certo para o marido estradeiro.
Muitas vezes em que bateu o desespero de não ter notícias do companheiro, Érica chegou a ligar na empresa pedindo para rastrear o veículo. “A gente fica desesperada porque tem lugar sem sinal e a gente não sabe se aconteceu alguma coisa”.
A saída de Heto é sempre marcada por choro do filho e aperto no coração de Érica. Já no retorno, a cristal leva Heitor para ver o pai chegando na rua em que estaciona o caminhão. Suprir a falta do pai do pequeno Heitor, 3 anos, também é desafiador. Heto sai no domingo de manhã e retorna apenas na sexta-feira da semana seguinte, uma eternidade para a criança que ainda não aprendeu a contar o tempo e preocupação pra quem entende bem os riscos da estrada.
“Eu peço pra que, se possível, ele mande mensagem pra saber se tá tudo bem, se chegou, se tava transito, o que comeu. Porque as vezes não dá tempo de parar e abrir a caixa cozinha, tá chovendo, pega transito e passa necessidades na estrada dependendo do lugar”, desabafa.
Clima de romance no trecho
Rosilene Maria da Silva, 44 anos, de São Paulo, tem verdadeira paixão em acompanhar o marido na estrada. Pudera, entre um intervalo e outro do carregamento e entrega do frete, a cozinheira aproveitava para curtir os pontos turísticos das cidades. O companheiro Wellington, chamado no trecho de Mainha, já fez rotas por todo Brasil, o que permitiu que ela conhecesse alguns cartões postais como Recife e Natal e nadasse até nas águas do Rio São Francisco.
Casados há 23 anos, nunca perderam o clima de romance, cada viagem com o marido é praticamente uma nova lua de mel, explica. Rosilene conta que certa vez o esposo foi fazer uma entrega em Maceió. Entrega feita, era hora de voltar. Mas não sem uma escapadinha para namorar. Wellington parou o caminhão na beira de uma praia deserta ao cair da noite.
O casal ali sozinho diante da vista paradisíaca, foi irresistível e ali mesmo fizeram amor na areia da praia. Rosilene, que relata a história aos risos, diz que foi um momento de romance e aventura, pois apesar da praia ser deserta, os filhos aguardavam o retorno dos pais na boleia do caminhão e havia o risco de serem pegos ali mesmo por turistas que também estivessem visitando o local.
A cristal que criou a filha até os 7 anos na boleia do caminhão
A boleia do caminhão é a cabine de direção e na maioria das vezes o dormitório do caminhoneiro, sobretudo os que fazem tiro longo. Por isso, muitas pessoas costumam dizer que o caminhão é sua segunda casa. Para a família Alves, a boleia pode ser considera a primeira casa mesmo.
Elaine Cristina Antunes Alves, 40 anos, largou a vida em Santa Catarina para viver em várias cidades a bordo do caminhão do marido. Casada com Alberto Carlos Alves, o Beto Labareda, o casal fez do veículo sua morada sobre rodas, local onde criaram a filha até os sete anos de idade.
Como a jornada começou
“Ele disse assim “quero que você pense bem antes de me responder, eu quero namorar com você, porém eu quero que você entenda que essa é minha profissão, hoje eu posso estar viajando para perto, amanhã pode ser pra longe”, lembra ela. A história dos dois já começou a mais de 100 por hora. Entre namoro, noivado e casamento foram apenas quatro meses.
Apesar de escolher uma data livre para a cerimônia de casamento, Elaine não tinha certeza de que marido chegaria a tempo, pois havia recebido um trabalho da empresa que era registrado na época. O pai, que era a dupla no caminhão, acabou fazendo a viagem de ida e volta para garantir que o filho estivesse no altar e deu tudo certo no final “meu sogro acabou chegando 5 minutos antes da cerimônia”.
Já casados, Elaine passou a sentir falta do marido. Beto fazia trechos longos e muitas vezes voltava para casa nos dias em que ela estava no trabalho e não conseguiam aproveitar as horas juntos. Foi aí que ela percebeu que o sim do altar não era só para uma vida de casada, mas para uma vida na estrada. “A gente quase não se via, a opção foi sair do trabalho para conseguir ficar com ele”.
Elaine largou a mesa do escritório em que trabalhava como secretária e foi direto para a cabine do caminhão. Depois de decidido, Elaine saiu com o marido pelas estradas dessa vida e só parou por 9 meses porque enfrentava uma gravidez de risco.
“Eu não aguentava mais, ele viajando longe e eu acamada em casa, então sai da maternidade direto para o caminhão, só passei em casa para pegar as roupas”.
Boleia: a casa da família Alves e os primeiros passos da filha
Coincidência ou não, Brenda, a filha do casal, nasceu no dia do motorista (25 de julho). Com cinco dias de vida, a pequena estradeira já estava no trecho acompanhado os pais. Eram pelo menos seis meses na estrada. “Minha casa ficava toda fechada, a gente voltava uma vez por ano para dar um oi pra família e caia na estrada”.
Isso não impediu que a família vivesse momentos inesquecíveis como a festa de um ano dentro do caminhão durante um descarregamento em Pernambuco, a comemoração do Natal em um parque de diversão em Brasília e as paradas nas praias do Nordeste. “A gente nunca teve férias, então procurava fazer esses momentos”.
Elaine conta que sempre se preocupou de que a filha desfrutasse da infância normal, por isso, em cada local que parava, estimulavam a interação com outras crianças e o desenvolvimento motor de Brenda, que deu seus primeiros passos em um posto fiscal na divisa de Alagoas com Sergipe.
O dia a dia de uma cristal na estrada
O dia começava às 4h. Apreciando o chimarrão, o casal assistia o sol nascer. Após café tomado e louça lavada seguiam viagem. Às 10h outra dose de chimarrão, como todo bom sulista que se preze, e estrada novamente. Beto sempre gostou de trechos longos, o que ajudava a manter essa rotina.
Sair logo cedo também fazia a viagem render, “Percorria um bom trecho logo de manhã e a tarde não precisa fazer tanta correria”. Com isso, o casal também aproximava a vida de um cotidiano de uma família com residência fixa, respeitando os horários de Brenda e dormindo as horas necessária para estar no trecho no outro dia.
Além das atividades “do lar”, quando era necessário, Elaine colocava a mão na massa e descarregava a carga com o marido. Para ela, a parceria da cristal faz diferença na vida do caminhoneiro “Viajar com alguém que te ajuda com tudo que o motorista normalmente tem que fazer sozinho, com alguém do lado para dar uma palavra quando as coisas não estão bem, porque nem tudo são flores na estrada”.
Os espinhos do trecho
Ela diz isso porque também vivenciou seu próprios desafios na estrada, como assaltos, dificuldades com a higiene da bebê “esquentava água para dar banho nela, porque no nordeste os banheiros só tem água fria…banheiro muitas vezes eu tive que pegar a vassoura do caminhão e lavar para que eu pudesse tomar banho”.
E as diversas vezes que teve que ficar na rua aguardando o marido fazer seu trabalho. “O mais sofrido foi em uma empresa que eu fiquei de madrugada na rua, das 10 da noite às 5h da manhã, não liberaram de jeito nenhum e não deixavam meu marido sair”.
Elaine também acumulou aprendizados que facilitaram a vida de cristal no trecho, como usar balde com água e sabão e balanço do caminhão como “máquina de lavar”, conta bem humorada. “Eu carregava uma esfregaderinha e uma bacia pequena, um dia um senhor, motorista, passou e viu a minha dificuldade de lavar uma calça naquela bacia e me ensinou”. Mas o maior ensinamento, afirma, foi aprender a viver com o necessário.
“No começo é bastante difícil, você sai do conforto da sua casa…mas você vê que não precisa de muita coisa pra viver e você vai se adaptando a essa vida e aprendendo a gostar”.
A espera pelo retorno ao trecho
Elaine gostou tanto da vida na estrada que ficou sete anos no trecho com o marido e só parou porque teve que fixar a morada para a filha estudar. Hoje, Brenda está com 15 anos. Elaine não vê a hora de voltar a vida de acompanhante de estradeiro. Juntos há 17 anos, Beto encontrou a parceira ideal de estrada.
Ao invés de ser ela a lamentar a partida do marido, é Beto quem sente mais falta dos dias de companheirismo na estrada. “Ele passa o dia ligando e falando ‘hoje eu chorei pedindo para Deus que você volte a viajar comigo, eu queria muito que você estivesse aqui’ e me mostrando foto com chimarrão que a gente tomava toda manhã, essas recordações que fazem bem”, conta satisfeita.
Por Jacqueline Maria da Silva
Adorei estas histórias, tbm fui mulher de caminhoneiro, agora motorista de troleibus no sbc, mas temos muitas histórias pra contar tbm, parabéns a todas as guerreiras e guerreiros que andam por aí a fora trabalhando por um país melhor, que Deus os protejam e os guarde de todas as coisas ruins, grande abraço Paula