Os caminhões bicudos são os queridos da galera do trecho, mas por que as montadoras não fabricam mais? Vamos entender melhor a legislação por trás disso e a discussão que está acontecendo no Senado para uma possível volta deles.
Lei brasileira
A lei que regulamenta as dimensões de peso e comprimento dos veículos de carga é o Código de Trânsito Brasileiro, Lei Nº 9.503/1997. O Art. 99 dessa lei diz que somente poderá transitar pelas vias terrestres o veículo cujo peso e dimensões atendam aos limites estabelecidos pelo CONTRAN.
A Resolução do Contran, Conselho Nacional de Trânsito, que legisla sobre esse tema é a Nº 882/2021, que estabelece medidas desde a extremidade dianteira até a extremidade traseira do veículo, além do Peso Bruto Total (PBT) e o Peso Bruto Total Combinado (PBTC).
No entanto, no mês passado, entrou em vigor uma nova regra, que trouxe alteração no comprimento para caminhão-trator (cavalo mecânico) + semirreboque. A Deliberação Nº 270, de 5 de dezembro de 2023, altera o comprimento máximo desse conjunto para 19,30 metros. Na antiga deliberação, o comprimento máximo era 18,60 metros nessas combinações de veículos de cargas (CVCs). Ou seja, são 70 centímetros a mais.
Sendo assim, segundo as definições do Contran, um caminhão + semirreboque pode medir até 19,30 metros e não precisa de uma Autorização Especial de Trânsito (AET). Isso quer dizer que a medida conta o cavalo mecânico e o implemento como um todo. Em outras palavras, a medida conta do parachoque dianteiro até o parachoque traseiro.
Ou seja, aqui no Brasil, o motorista que optar por um caminhão bicudo irá perder esse espaço no implemento e, consequentemente, perderá capacidade de carga.
O que as pessoas geralmente pensam é que as montadoras não querem mais fabricar esses tipos de caminhões, e não é bem assim. Devido à regulamentação, o mercado prefere os caminhões frontais para carregar mais carga. Como a montadora precisa fabricar o que o mercado quer comprar, as marcas foram deixando de produzir esse tipo de cabine.
Lei norte-Americana
A Lei dos Estados Unidos da América é diferente e, digamos, até invejada pelos motoristas, pois lá o comprimento do caminhão conta a partir do implemento. Isso quer dizer que a cabine poderá ser alongada sem perda de capacidade de carga. Por isso é comum encontrar caminhões americanos com cama larga, equipamentos de cozinha e muito espaço e conforto interno.
Lá, o caminhoneiro também trabalha, no máximo, 11 horas por dia, com paradas obrigatórias. Por isso que os brasileiros comparam a legislação daqui com o país do norte da América. A rotina de trabalho é semelhante à de longas viagens e dias fora de casa, porém, os caminhões de grande espaço interno podem ser uma escolha lá sem perder no tamanho do implemento.
Proposta de Lei 2084/2022
Pensando nessa questão de conforto e no gosto de alguns motoristas de poderem escolher ou não o uso dos bicudos sem perder na capacidade da carga, o Senador Jorginho Mello (PL/SC) criou o Projeto de Lei 2084/2022. O projeto altera a lei do CTB de 1997, com especificações do Contran, para excluir a cabine da contagem do comprimento dos veículos articulados.
A justificativa é possibilitar que os profissionais possam ter um espaço de trabalho mais adequado às suas longas jornadas na direção, propondo que a unidade tratora não seja considerada no cômputo da extensão dos veículos.
O texto traz a questão de segurança tanto dos motoristas fadigados, como dos usuários da via, pois com cabines maiores e mais conforto para o condutor, os números de acidentes por cansaço poderiam diminuir. Outra causa para a mudança do regulamento atual é a segurança que a cabine poderia trazer.
“Ademais, uma cabine bicuda, além de mais espaçosa e confortável, protege o motorista como um escudo em caso de colisões, evitando o eventual “efeito kombi” presente nos modelos caras chatas”, relata o autor do projeto, o Senador Jorginho Mello (PL/SC).
Rejeitado pela Comissão de Serviços de Infraestrutura
O projeto agora está em tramitação e será analisado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Porém, foi rejeitado pela Comissão de Serviços e Infraestrutura, em setembro do ano passado.
O documento destacou um motivo relevante para o projeto não seguir em frente. Para a comissão, a questão mais significativa é a mudança do regulamento do Contran. O Conselho é um órgão executivo, e não cabe ao Poder Legislativo a intervenção. Do ponto de vista jurídico, eles estariam invadindo a reserva da administração, violando a separação entre poderes.
Os outros motivos para a rejeição foram baseados na segurança dos usuários das vias públicas. A exclusão da cabine da soma dos conjuntos, afetaria gravemente a segurança no trânsito, segundo a Comissão. Isso porque aumentaria o tempo de ultrapassagem desses veículos e, consequentemente, o risco de colisões frontais. Além disso ampliaria a largura de varredura (Arraste e Varredura) nas curvas e alças de acesso, com risco de interferências e colisões.
Opinião de caminhoneiro
Henrique Richard (QRA: Barba), caminhoneiro há 3 anos e dono de um caminhão 1620 da Mercedes-Benz, diz que prefere os bicudos. Para ele, o caminhão de cabine longa traz conforto e segurança ao motorista. Barba nos explica melhor em questões do formato da cabine.
“No caminhão bicudo, o eixo está à frente do motorista, onde se torna mais confortável a cabine. Ela não é uma cabine que bate seco, não é uma cabine que fica pulando porque o eixo está à frente. Diferente de um caminhão frontal que você está sentado em cima do eixo”.
Richard também argumenta sobre a segurança do bicudo que faz muita diferença na preferência desse caminhão. Segundo ele, justamente essa parte longa é que pode proteger o motorista de possíveis acidentes fatais.
“Eu prefiro por causa da segurança que o bicudo dá. Porque até acertar o motorista em uma colisão, lógico dependendo da velocidade, mas até acertar o motorista que está conduzindo o veículo demora pra chegar. Então, dependendo da batida que for, o caminhão bicudo te traz essa segurança maior devido ao motor estar à frente, ter um capô à frente”.
Conforto do motorista e da família
Barba nos conta da Scania 113 que seu pai tinha, onde dormia a família inteira confortavelmente na cabine. Esse caminhão, onde viajavam ele, o pai, a mãe e a irmã mais nova, era o ideal para acolher a todos e passar um tempo juntos.
Comparando com a legislação norte-americana, ele diz que lá o caminhoneiro tem qualidade de vida. Para ele, os caminhões do Brasil atendem à necessidade de trabalho, mas falta pensar nesse aconchego dos viajantes, ainda mais para o motorista que viaja com a família, que será seu caso um dia, assim como viajou com seu pai.
O que podemos esperar com essa proposta de lei?
A volta dos bicudos é uma coisa que a maioria dos caminhoneiros deseja e pode até ajudar na comodidade do profissional, segundo o relator do projeto. Caso não ocorra, o futuro será das boleias de caras chatas que estão se moldando para acolher com conforto os motoristas.
A proposta para que a lei brasileira seja equiparada com a lei americana está em tramitação no Senado, mas tem poucas chances dos bicudos voltarem. Pelo o que podemos conferir até agora, com as justificativas de rejeição da CI, o projeto tem um impasse em relação à alteração do Contran, que é um órgão executivo.
Nas estradas, os caminhões de cara chata já dominam e os bicudos deixaram saudades e viraram caminhão de colecionador. Agora o projeto será analisado pela última comissão, mas é pouco provável que vejamos bicudos sendo fabricados novamente pelas montadoras.
Por enquanto, vamos ver a matéria da Paula Toco sobre o último caminhão bicudo fabricado pela Mercedes-Benz como despedida, o Atron. Na reportagem também podemos comparar as opiniões dos estradeiros, quem recebeu bem os frontais e quem vai sentir falta das cabines longas.
Veja também: Desvalorização da profissão na visão do estradeiro e adeus aos bicudos
Por Thaís Corrêa com informações do Senado Federal
Filha de caminhoneiro, recém-formada em jornalismo, resolveu usar a comunicação para manter a classe bem informada e, com isso, formar novas gerações de motoristas profissionais cada vez melhores para o futuro do país.