sexta-feira, novembro 22, 2024

“Boa viagem, filho”: Como é ser mãe de caminhoneiro?

Curiosidades"Boa viagem, filho": Como é ser mãe de caminhoneiro?

No dia das mães, contamos duas histórias. Dona Donzilia, mãe de quatro caminhoneiros e Maria, mãe de uma caminhoneira, por meio de depoimentos emocionantes.

“Mãe de caminhoneiro é especial”

O sol ainda estava dormindo, mas Donzilia Maria Nunes Pereira já estava bem acordada. Ajoelhada na sala rezando no escuro para São Cristóvão, padroeiros dos motoristas, pedia proteção aos quatro filhos e marido, todos caminhoneiros. Antes de partir, os cuidados e advertências típicos das mães “leva mais um pão, pega uma blusa, toma mais um cafezinho”.

Já com motor do caminhão ligado e prestes a partir, corria até o veículo para dar o último abraço e desejar boa viagem. Naquela época, não havia meios de comunicar-se, mesmo assim, deixava bilhetes carinhosos no bolso dos filhos e entre o segundo e terceiro dia da partida dos entes queridos, ajeitava a casa, fazia bolo de fubá, polenta e tudo mais que não estragasse, caso ninguém chegasse.

Se chegasse, a alegria era certa. “Vinha abraçar todo mundo e dizia ‘que bom que você chegou'”, conta Antonio Édson Pereira, 58 anos, filho de Donzilia. A mãe, que faleceu em 2018, foi um exemplo de força e superação para a família. Casou-se aos 17 anos e foi morar na roça, no interior do Paraná, com o esposo agricultor. Com o crescimento da família, o trabalho rural já não sustentava a casa, foi assim que, na década de 70 o patriarca migrou para a profissão de caminhoneiro “

O marido, Oswaldo, passava 15 dias na estrada transportando fumo e tijolos, o que foi praticamente um treino para mais tarde quando outros filhos seguiriam a mesma profissão. Um deles passando até 30 dias na estrada. Antonio conta que a fé da mãe era tanta que resolveu colocar nome composto em todos os filhos, sempre em homenagem a um santo, e assim nasceram Antônio, José, João e por aí vai.

Para ele as mães de caminhoneiros são especiais porque entendem a importância do transporte e aceitam que os filhos vivam os perigos da estrada para que outras pessoas possam ter, inclusive, comida na mesa. “Mesmo com as dificuldades, sempre incentivando, elas transmitem essa segurança ‘vá, leve, transporte, porque alguém tá esperando, boa viagem'”, acrescenta.

Boa viagem, filho: Como e ser mae de caminhoneiro
Retrato de família: Donzilia , o marido e os 13 filhos.
Foto: Arquivo pessoal

A dor da saudade

Antonio conta que a vida da mãe nunca foi fácil, mesmo assim, sua serenidade dava força à família nos momentos dolorosos, como na perda de um dos filhos. O caminhoneiro Hilário morreu aos 53 anos em um acidente de trânsito. “Quem deu a notícia à ela disse que ela abraçava forte, e falava ‘vamos confiar, o que é vontade de Deus, que seja feita a vossa vontade não somente a minha ou a nossa'”.

Apesar disso, não desestimulou os demais filhos estradeiros. “Ela só pedia para ter fé e estar sempre oração, ter cuidado e respeito no trânsito, mas e, nenhum momento desencorajou ninguém a continuar trabalhando”. 

Boa viagem, filho: Como e ser mae de caminhoneiro
Donzilia e o marido Oswaldo à esquerda. 

Foto: Arquivo pessoal

Dona Donzilia adorava viajar, mas quase não acompanhou o marido na boleia. Somente com os filhos crescidos, pode aproveitar a carona. “Parecia uma criança mostrando as coisas, se distraindo naquelas viagens, que para ela era novidade, porque não teve muita oportunidade de viajar devido ao cuidado dos 13 filhos”.

A grande família de Donzilia é muito unida, conta Antonio. Há 9 anos se reúne próximo ao Dia do Trabalho os filhos, 27 netos e 10 bisnetos. Encontros que foram interrompidos pela pandemia por covid-19. E hoje, embora falecida, o filho faz questão de dizer que a mãe lhe deixou o maior legado e que ele leva em sua profissão “Ela me ensinou a ser trabalhador, jamais perder a fé e a esperança e se tornou um exemplo de vida e de alegria, pois mesmo com as dificuldades, tava sempre sorrindo”.

Boa viagem, filho: Como e ser mae de caminhoneiro
Donzilia recebe até homenagem no jornal
Foto Arquivo pessoal
Boa viagem, filho: Como e ser mae de caminhoneiro
Foto: Arquivo pessoal

A saudade ainda é grande, e cresce próximo a data comemorativa do Dia das Mães, afirma Antonio emocionado. “Desejo a todas as mães do mundo inteiro, dos caminhoneiros do Brasil, que tenham um feliz dia e aqueles como no meu caso, que a mãe já não está mais entre a gente, que também sejam confortados e sejam felizes porque elas devem estar em bom lugar”.

Boa viagem, filho: Como e ser mae de caminhoneiro
Donzilia e o esposo no dia do casamento de Antonio

Foto: Arquivo pessoal

Herança de mãe

“Ela falou que queria ser caminhoneira e eu falei ‘corre atrás do seu sonho’, mas falei aquilo achando que ela não ia e ela foi e conseguiu realizar”, descreve de forma bem humorada Maria Antônia Paim da Silva, 53 anos, de Campo Grande, Mato Grosso do Sul.

A mãe conta que falou dessa forma com a filha na época porque achava que era brincadeira. A filha, Janaína, era casada com um caminhoneiro e foi tomando gosto pela profissão. “Eu nunca imaginava que ela queria seguir esse caminho. Eu achava que ela seria uma advogada e futuramente uma juíza, porque era o que ela falava”.

Só depois de largar o último ano da faculdade, que Maria teve certeza que Janaína estava falando sério. Ainda assim, admite que não aceitou no começo, mas quando entendeu a paixão da filha, passou a apoiá-la.

Com isso, o sentimento foi se transformando em admiração e cuidado. “Sou muito orgulhosa de ser mãe dela e eu tiro o chapéu porque não é qualquer homem que faz o que aquela baixinha faz não viu. Ainda mais com todo o preconceito da profissão”, explica.

O interesse de Janaina pelo caminhão não veio de berço. “Não dirijo nem carro pequeno”, brinca Maria. Mas a força para ir atrás do sonho foi herança da geração de mulheres da sua família, garante. “Minha mãe foi uma mulher muito forte muito batalhadora a vida inteira cuidou muito dela [Janaína] para mim”.

Foi com essa ajuda que Maria conseguiu realizar o sonho de ser cozinheira. Hoje, retribui fazendo o mesmo por Janaína, ao cuidar das duas netas para que ela possa trazer o sustento da família trabalhando nas estradas. “Amor de vó é duas vezes o amor de mãe, porque ela é minha filha o amor que eu tenho nela dos meus netos sai dobrado, então cuidar das minhas netas é uma alegria”.

Boa viagem, filho: Como e ser mae de caminhoneiro
Maria Antônia com a filha Janaína e as netas na boleia do caminhão.

Foto: arquivo pessoal

Mãe de caminhoneira: Coração a 100 por hora

Maria e Janaína tem uma relação muito boa. “Ela é uma filha que, mesmo longe, se preocupa. Tiveram situações de eu estar doente no posto e chegar de viagem, não passar nem em casa e ela amanhecer ali comigo”, comenta com carinho.

Ainda com todo esse afeto, existe espaço para disciplina. “Esses dias que eu estava meio brava com ela e falei “Olha eu sou sua mãe. Não importa a idade que você tenha, eu vou continuar sendo sua mãe”, relata.

São poucos dias na estrada, no máximo três, mesmo assim, dona Maria faz diariamente chamada de vídeo com a filha. O retorno é sempre uma alegria com uma comidinha gostosa. O barulho do caminhão é o sinal da chegada, o cachorrinho de Janaína o anunciante, comenta Maria.

Mãe e filha também já foram para o trecho juntas, momento descrito por ela como muito divertidos e com muitas risadas. Nessas ocasiões, Janaína cede seu melhor espaço, a cama da boleia, para a mãe dormir e se acomoda na beliche do caminhão.

Ser mãe de caminhoneira é um misto de saudade e aflição. “É muito angustiante porque vemos tantas coisas que acontecem, mas eu creio muito em Deus e todos os dias entrego nas mãos do senhor”. Dias atrás, Maria passou um susto quando soube que a filha havia sofrido um acidente enquanto voltada para casa. “Fiquei desesperada”.

Ainda assim, pede que as pessoas estimulem os sonhos dos filhos. “Hoje o mundo tá perigoso em qualquer lugar, não adianta falar que é só na estrada, então mães, apoiem suas filhas que querem seguir esse caminho”.

Leia também: De cristais a joias do volante, matéria especial feita em comemoração ao dia das mulheres

Por Jacqueline Maria da Silva

 

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