Já ouviu falar no termo cristal? Na linguagem estradeira, cristais são as esposas que acompanham os caminhoneiros nas viagens pelas rodovias. Apesar do nome, de frágeis elas não têm nada, aliás, muitas delas acabam se apaixonando pela profissão e decidem seguir o mesmo caminho. No dia Internacional da Mulher apresentamos duas caminhoneiras, Janaína e Marileia, mulheres que passaram de cristais a joias do volante.
Para conferir parte do depoimento delas, assista o programa Pé Na Estrada também .
Conheça duas joias do volante
Da sala de aula para a cabine do caminhão: Uma Índia na estrada
Janaína Paim da Silva, a Índia, de Campo Grande, Mato Grosso do Sul aprendeu a dirigir aos 14 anos em uma 113 de dez marchas, por influencia do ex marido, com quem ficou casada por 15 anos. Por um tempo, Janaína se dividia entre a boleia do caminhão e a sala de aula, mas adivinha qual paixão falou mais alto? Foi assim que ela trocou a faculdade pela liberdade das estradas e passou de cristal a joia do volante. “Fiz até o quarto ano de direito, mas apaixonei por isso aqui e larguei”.
Hoje, Janaína cumpre dois importantes papéis em sua vida, como mãe solo de duas meninas, Mariele, 12 anos, e Elisa, 6 anos, e de caminhoneira, trabalho que rende o sustento da casa. Apesar de amar a profissão, não é fácil ficar longe das filhas, afirma. Quando está trabalhando, sua tia cuida das crianças, mas sempre que possível, leva as crias no trecho “Elas viajam direto comigo e adoram”. Recentemente, fez uma festa no próprio caminhão para comemorar o aniversário da maior.
Mas nem tudo foram flores nessa estrada. Uma das histórias que marcou Índia foi logo no início da carreira quando o ex marido a esqueceu em um posto de combustível à noite enquanto estava usando o banheiro. “Eu era uma cristal, isso aí ficou marcado pra mim a vida inteira”. Por sorte, havia um amigo no local que levou Janaína ao encontro do marido antes da divisa do Mato Grosso do Sul com São Paulo. “Se ele tivesse passado, eu ia ter que voltar de carona com a garrafinha de água na mão”, desabafa.
Quando se separou, Índia começou a carreira com a habilitação que tinha na época, categoria D. Antes de ser estradeira, trabalhou como motorista de ônibus de viagem, depois passou a carreteira de cimento a granel e cimento ensacado, canavieira, e até motorista de pau de arara. A jovem avançou na estrada e, com apenas 37 anos, já coleciona dez como caminhoneira e quer mais. “Eu acho que a vida é um constante aprendizado. Se Deus quiser, partiu nove eixos daqui pra frente”, comenta animada.
Da boleia para o volante: A caminhoneira que passa 30 dias na estrada
O caminhão ainda não tem nome, afirma Marileia Paula Barbosa, 42 anos, mas a caminhoneira já tem sua identidade na estrada: Mari Mineirinha. De Pouso Alegre, Minas Gerais, para o Brasil, ela tem apenas 5 anos de experiência como motorista, mas uma vida inteira de vivência na boleia de um caminhão.
Isso porque Marileia é esposa, irmã e filha de carreteiro, um contexto que contribuiu para o sonho de trilhar o mesmo caminho. “Meu pai já é motorista e depois de 37 anos foi que eu tive vontade de trocar minha categoria e trabalhar no caminhão. E não saí mais”.
Foi assim que Marileia deixou a vida de dona do lar para se dedicar à carreira e viver a paixão. Segundo conta, o fato de ser uma profissão exercida por parte da família ajudou na aceitação. “Eu sempre gostei, tá no sangue. Sempre fui apaixonada, sou apaixonada! Sempre andei para tudo que é lugar”. Ela conta que a mãe foi uma grande apoiadora.
Entre os desafios da estrada, o mais difícil para ela é ficar longe do marido e das três filhas, duas maiores de idade e uma de 11 anos. A menor está se adaptando, já que a profissão de Marileia é recente. A saudade da família é algo constante, pois muitas vezes ela passa um mês fora fazendo trecho portuário de Guarujá a São Paulo.
Nada que uma chamada de vídeo ou mensagem pelo whats app não resolva. Ah, e de vez em quando ganha a companhia de uma das filhas na boleia do seu caminhão. Quando a entrevistamos, Mari estava na estrada havia dias e quis deixar um recadinho pra família.. “Quero mandar um abraço pras minhas filhas, pra minha mãe que sempre me apoiou muito e meu marido e um grande abraço aí pro pessoal da estrada também”.
Caminhoneiras ainda são minoria na estrada
Solicitamos para o Departamento de Trânsito (DETRAN) dos diversos estados brasileiros o número de pessoas com Carteira Nacional de Trânsito (CNH) das categorias C, D e E, que habilitam para o transporte a partir de 3,5 toneladas ou oito passageiros. Até o fechamento dessa matéria, recebemos os levantamentos da Bahia, Paraíba, Mato Grosso do Sul, Espírito Santo e São Paulo.
Do total de condutores habilitados nas categorias descritas, mais de 3 milhões e 500 mil são do gênero masculino, enquanto o gênero feminino não chega a 200 mil. Em outras palavras, a cada 100 pessoas com CNH profissional, apenas cinco são mulheres, conforme podemos comparar no gráfico abaixo.
São Paulo possui a maior porcentagem e quantidade de mulheres ao volante, já Mato Grosso do Sul, estado com menor quantidade de mulheres com essas CNHs, tem uma porcentagem maior de mulheres habilitadas quando comparado ao Espírito Santo.
NÚMERO DE HABILITADOS PARA TRANSPORTE DE CARGA | |||
ESTADO | HOMENS | MULHERES | % DE MULHERES |
São Paulo | 3.162.195 | 178.269 | 5,34 |
Espírito Santo | 253.038 | 7.061 | 2,71 |
Bahia | 137.139 | 2.578 | 1,84 |
Paraíba | 81.906 | 1.256 | 1,51 |
Mato Grosso do Sul | 57.617 | 2.086 | 3,49 |
As mulheres estão cada vez mais dominando esse espaço, majoritariamente masculino. Duas iniciativas da Mercedes-Benz, publicadas no nosso site, mostram como elas estão se tornando protagonistas de seu caminho. No Natal, duas mulheres foram convidadas para participar da Caravana Coca-Cola, e outras 30 mulheres foram premiadas com a CNH categoria C, ambas iniciativas do A Voz Delas.
Os desafios de ser uma joia da estrada
De acordo com Marileia, atualmente, é difícil encontrar mulheres no trecho acompanhando os maridos e menos ainda dirigindo caminhões. Um dos motivos apontados por ela é o ambiente pouco acolhedor às necessidades da mulher. “É difícil achar lugar para se alimentar direito. Já são três da tarde e eu ainda não comi. Além disso, é difícil achar um banheiro para mulher usar ou tomar banho”, comenta Marileia.
Dificuldade encontrada até mesmo nas empresas onde fazem descarregamento de carga “Quando tem, tá trancado, eles não sabem onde tá a chave. Quando não tem, a gente tem que tomar em banheiro masculino e pedir para os colegas cuidarem das portas”, desabafa Janaína.
Nossas entrevistadas acrescentam que as pessoas ainda não se acostumaram com as mulheres ocupando as estradas e que muitas não ingressam na profissão por medo da direção, pela questão de idade e principalmente do preconceito. “Quando acontece algum errinho, aconteceu porque era mulher”, acrescenta Janaína.
As estatísticas reforçam o relatos das motoristas, pois menos da metade das mulheres que possuem CNH nas categorias C, D e E exercem a profissão de forma remunerada, como podemos identificar no gráfico abaixo.
Mas esse problema, elas driblam com a experiência e habilidade, como em um dia desses em que Janaína fez uma manobra difícil e, ao terminar, foi aplaudida por diversas mulheres que assistiam. “Não é quando os homens me admiram, mas as mulheres sentem orgulho de mim que eu fico feliz.”
Tanto para Marileia quanto Janaína é um orgulho representar a classe feminina em uma profissão majoritariamente masculina. Apesar de todas as dificuldades encontradas no percurso, essas joias do volante não trocam essa vida por mais nada.
“Se você ama, lute, troque sua carteira, não desista, venha para a estrada, vai sofrer um pouquinho, mas para quem gosta, não tem dificuldade, tudo a gente passa na alegria e no amor”, incentiva Marileia.
Por Jacqueline Maria da Silva