Cerca de 97% das mulheres já passaram por importunação sexual em transporte público no Brasil e praticamente 0% reportaram isso às as autoridades. Esses são alguns dos números apresentados pela Mercedes-Benz durante a coletiva de lançamento do projeto Coletivo de Respeito, iniciativa que disponibilizará um canal de denúncia de assédio sexual contra mulheres sofrido no transporte público.
O Coletivo de Respeito é um braço do A Voz Delas, movimento criado para caminhoneiras e cristais e que culminou na fabricação do primeiro caminhão do mundo para mulheres e com banheiro na cabine. Em março, a Mercedes antecipou que o movimento abrangeria a categoria do transporte de passageiros.
Como surgiu o Coletivo de Respeito?
O desejo de contemplar mulheres do transporte de passageiros já era antiga, segundo Kathrin Pfeffer, CFO da Mercedes América Latina. Debruçando-se em dados sobre violência de gênero, a equipe de A Voz Delas resolveu investigar ocorrências de assédio no transporte entre as próprias funcionárias da empresa.
O dado foi assustador, confirmou a representante, uma vez que mesmo tendo acesso aos fretados da empresa, 51% das funcionárias entrevistadas relataram situações de assédio. Preocupada com esses números, a empresa questionou “como proteger essas vítimas?”, apontou Kathrin. Desse incômodo surgiu a primeira ação, Coletivo de Respeito, que disponibilizará um canal de denúncia de assédio contra mulheres no transporte público.
Mulheres poderão fazer denúncias de assédio por QR Code
Duas ações de divulgação foram planejadas nesse primeiro momento, segundo Walter Barbosa, Diretor de Vendas e Matketing de Ônibus Mercedes-Benz do Brasil. A primeira será nas redes sociais do A Voz Delas a fim de expandir a informação do coletivo para todo o Brasil.
A segunda será por meio de mídia impressa distribuída, anexada ou colada à carroceria de alguns veículos das frotas urbanas do transporte público de três capitais brasileiras, Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro. A montadora garantiu que a ação abrangerá trens e metrôs, de acordo com a possibilidade de parcerias com empresas de ônibus, outras montadoras e com o poder público.
Nesses materiais haverá um QR code que, quando acessado, leva a um formulário onde mulheres vítimas ou pessoas que presenciem situações de assédio no transporte poderão notificar ou pedir auxílio.
O canal atua também como um primeiro atendimento imediato que direciona a vítima, seja para acolhimento, para atendimento especializado, para direcionar o pedido de ajuda à autoridades policiais ou encaminhamento do caso para justiça. Segundo a montadora, as duas ações começaram segunda-feira (17 de abril).
O Coletivo de Respeito é uma parceria com o projeto Justiceiras, que já faz esse trabalho de atendimento à mulheres vítimas de violência. Com isso, o papel da Mercedes será de viabilizar esse canal informativo e de denúncia, enquanto das Justiceiras de geri-lo e agir sobre os casos que surgirem.
Conheça o projeto Justiceiras
A cada 7 segundos uma mulher sofre violência física e o Brasil é o 5º país com maior número de feminicídios do mundo. “Quinto país do mundo mais perigoso para sermos mulheres e andarmos livres na rua”, desaba Gabriela Manssur, advogada especialista em Direitos das Mulheres e Promotora de Justiça, idealizadora do projeto Justiceiras.
Gabriela atua há 20 anos na área e já cuidou de casos importantes como das vítimas de abuso do líder espiritual João de Deus, e no desenvolvimento de legislações de proteção a mulheres como Lei Maria da Penha, Lei de Importunação Sexual, entre outras.
Criação
O Justiceiras foi criado em 2020, auge da pandemia. Nessa época, a então promotora de Justiça estranhou os poucos casos de violência doméstica contra mulheres, medidas protetivas, processos, entre outras situações que antes chegavam a promotoria.
Perguntando-se onde estariam essas vítimas e sentido o sistema de justiça brasileiro burocrático para mulheres que desejavam pedir ajuda, resolveu criar um canal de denúncias com rápido acesso ao atendimento jurídico, social, psicológico e de acolhimento.
Por meio de um formulário e divulgação nas redes sociais, em uma semana, Gabriela recebeu cerca de 100 pedidos de ajuda, enquanto no Ministério Público era um por semana. Em seguida, também se manifestou nas redes perguntando se haviam mulheres que gostariam de ajudar outras mulheres. Teve mais de mil mulheres inscritas.
Em três anos, essa rede expandiu, e hoje conta com mais de 15 mil voluntárias justiceiras na área jurídica, psicológica, socioassistencial, médica e rede de apoio e acolhimento online e gratuito. O projeto já atendeu mais de 13,5 mil vítimas com cuidado à mulheres trans e negras, grupos que mais sofrem violência. Além disso, expandiu sua atuação para mais de 25 países do mundo.
A importância do canal para denúncia de assédio contra mulheres no transporte público
Para Gabriela, o Brasil possui as melhores leis contra violência de gênero e, ainda assim, apresenta números relevantes de feminicídio, isso por conta da efetividade e aplicabilidade da legislação, afirma. Ela cita a exemplo da falta de tornozelheiras eletrônicas para homens que têm medida protetiva, o que evitaria muitas mortes.
“A violência paralisa”, cita ela ao dizer que muitas mulheres também não se sentem seguras para denunciar porque o caminho para provar que sofreu uma violência (essa frase tá sem final – o caminho o que?). Podemos citar um exemplo recente. Em uma entrevista para outra matéria aqui no Pé na Estrada, Vanessa, vendedora de panos de prato em pátio de posto, contou que já havia sofrido diversas situações de importunação sexual no trecho, mas não denunciava porque não achava que acreditariam nela.
Segundo Gabriela, uma mulher vítima de violência custa para o poder público R$ 6 mil por mês, ou seja, R$ 72 mil reais por ano. No ano passado, foram 22 milhões de mulheres vítimas de violência, aponta ela. “Nós deixamos de aplicar em outras questões como educação, saúde, segurança que foram vítimas de violência” .
Espécie de “Botão do Pânico”
A violência contra mulher é uma prioridade e um dos maiores problemas sociais, de acordo com a promotora. Ainda assim ela acredita que faltam investimentos nesse sentido e que o caminho é a parceria entre setor público, privado e terceiro setor, a exemplo do projeto Justiceiras. Com essa união, Justiceiras ganhou força, sendo considerado um dos maiores projetos de denúncia de violência contra a mulher do mundo, cita.
Ciente da demanda que pode surgir a partir da iniciativa do Coletivo de Respeito, ela afirma que o Justiceiras tem se preparado para isso e que a ideia é se adaptar à realidade conforme ela se apresentar. Ela lembra que o canal também será um instrumento de levantamento de dados para pressionar ações que previnam crimes, melhorem os serviços e punam responsáveis.
Acrescentou ainda que o QR code não deixa de ser um “botão do pânico”, porém que retira a obrigatoriedade de profissionais do transporte de fazerem essa denúncia que exige cautela e preparo e pode colocá-los em situações de risco.
Futuras ações da Mercedes- Benz para mulheres do transporte de ônibus
Segundo Walter Barbosa, da Mercedes-Benz, para a primeira fase do projeto, uma equipe de 22 voluntários composta por líderes de todas as diretorias da Mercedes foi formada. A montadora investirá R$ 1,4 milhão e a DEG, subsidiário do banco de desenvolvimento alemão, aportará R$ 1,8 milhão. Uma doação de R$ 300 mil será feita por um aglomerado de outras empresas de tecnologia voltadas para ônibus.
O projeto contará ainda com apoio da NTU (Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos) e Câmara Brasil-Alemanha de São Paulo, entre outras organizações.
Segundo os representantes da Mercedes-Benz e A Voz Delas, embora o Coletivo de Respeito abranja motoristas e cobradoras, existem planos para ações específicas voltadas para mulheres que trabalham no transporte. Por exemplo, o aumento da participação da mulher no setor, onde hoje, apenas 10% das motoristas de ônibus rodoviário e coletivos são mulheres. Essas ações ainda têm sido pensadas.
“Para ônibus, estamos na fase de identificar as necessidades das mulheres como motoristas de ônibus […] acredito que nos próximos anos também teremos oportunidade de desenvolver em parceria com os encarroçadores, porque a Mercedes fabrica a parte de chassis, então depende de um trabalho conjunto e ter certamente um melhor produto para elas”, citou Walter.
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Por Jacqueline Maria da Silva